Segunda-feira, Abril 02, 2007

Delírio - Parte 4

Felipe Iubel

Por entre as folhas das belas árvores revelaram-se três terríveis olhos negros. Tão escuros como as penas das aves de mal agouro que jamais existiram na Ilha de Delírio. Tratava-se de uma besta mítica da qual ela havia ouvido falar em histórias infantis que sempre julgou fantasiosas. Uma lendária figura que jamais se revelara para nenhum dos discípulos do Mestre ou dos Senhores anteriores. Um animal que castigava os pecadores em tempos de perdição já esquecidos. Um resquício de épocas pouco retratadas ou contadas. Tratava-se de um Barún.
A ausência de brilho. A respiração ofegante de um predador envolto em manto cinza diante de sua frágil presa. A cachoeira já não podia mais ser vista. Escuridão. Seus três grandes olhos repletos de maldade avaliavam os movimentos da indefesa Drímer. O Barún parecia desfrutar do mais intenso dos prazeres sádicos. Crueldade. Aproximava seus dentes e suas garras da pele macia da belíssima jovem, gerando um contraste ainda mais notável do que o de todas as luzes no istoriquétier do Mestre.
Ela tentou fugir. Porém, a fera a impediu e apresentou toda sua fúria. Rugidos que mais pareciam os gritos de sofrimento de suas vítimas. Apoiou-se apenas nas patas traseiras revelando todo seu poder selvagem e sua força cinza. E, quando o Barún se aproximava, aparentemente pronto para torturá-la com ferimentos terríveis e abatê-la com dor insuportável, a esperança surgiu num feixe de luz.
Uma forte luz turquesa fez arder os olhos sensíveis das árvores. Era o Mestre. Ele, como um herói épico, colocou-se entre a pecadora Drímer e o animalesco Barún. Levantou o braço. Dedos unidos. Mão espalmada. Gesto imponente de ordem. O manto cinza da besta já não afligia o coração da jovem. Os sons da cachoeira já podiam ser ouvidos outra vez. A sabedoria, a coragem e a voz do mestre formavam um conjunto metafísico poderoso.
- Eu sou o Senhor e Mestre das Luzes do Povo de Delírio. Afasta-te. Eu te ordeno!
Conquanto, a fúria selvagem de um animal lendário como aquele não seria aplacada tão facilmente. Os rugidos que imitavam brados de dor soaram em resposta. O Barún atacou o mestre num golpe que misturava dentes e garras. Violência e força. Num gesto rápido do Mestre, o animal teve dois de seus três olhos perfurados pela luz turquesa. Gemidos. Dor. Sangue. A fera fugiu aflita, perturbada e perdida. Correu raspando suas garras e seus dentes em árvores que não desviaram seu caminho. E, só quando o manto cinza já escapava dos olhos de seu Mestre e salvador, Drímer viu a luz turquesa diminuir. Ele rompeu o silêncio.
- Drímer, tu foste avisada sobre os perigos do amor!
Ela tocou com graciosidade nas mãos dele. Luzes amarelas e vermelhas. Seus olhos se encontraram. A emoção e a intensidade do toque suave não deixava espaço para a lembrança da violência cinza. Nada além daquele novo sentimento importava.
- O que sinto agora, Mestre, é diferente de tudo. É para mim uma novidade tão surpreendente quanto agradável. Nem mesmo a mais terrível das ameaças que acompanham este sentimento podem me fazer desistir agora. Ainda mais agora...
- Porém, deves abdicar de tal sentimento... todos devemos.
A voz dele vacilou. Seus olhos fecharam de cansaço por alguns segundos.
- Já está além dos limites da minha própria vontade. O sentimento já ultrapassou a fronteira onde a decisão ou a parcimônia das luzes alcançam.
- Neste caso, só me resta temer pela tua vida.
- Pela minha vida, Mestre? Ou pelas nossas vidas?
Inesperadamente, a luz turquesa voltou a ganhar força. Brilhava mais que o perigoso amarelo e que o transgressor vermelho. Drímer não suportou a magnitude que aquela luz precisou chegar para se sobrepor às outras. Desfaleceu e, quando recobrou a consciência, já era aguadei.”

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